Produto de plataforma NÃO tem efeito de rede
O termo "plataforma" confunde, por isso é necessário conhecer bem os conceitos para diferenciá-las. Do contrário, você pode perseguir objetivos incompatíveis com o propósito da sua plataforma.
⚠️ ATENÇÃO: entende-se por “produto de plataforma” os produtos técnicos de uso interno: plataforma de produto, plataforma de dados e plataforma de desenvolvimento (sistema CI/CD).
Parece que quase tudo no universo digital recebe o nome de “plataforma”, o que causa muita (muita!) confusão.
Um dos motivos é a falta de consenso em relação à nomenclatura. Pior ainda, há quem define que “plataforma é…” e apresenta uma lista de duas, três, quatro coisas diferentes. Se não distinguirmos o tipo de plataforma, todas as definições servem. Quando especificamos, fica claro que as plataformas que entendemos como produto técnico não tem efeito de rede (network effect).
O que é o efeito de rede?
“O efeito de rede é um princípio empresarial que ilustra a ideia de que quando mais pessoas usam um produto ou serviço, seu valor aumenta” (tradução livre), é o que traz o texto “What Is the Network Effect?”, publicado no blog da Wharton, uma das melhores escolas de negócios do mundo.
“The network effect is a business principle that illustrates the idea that when more people use a product or service, its value increases.”
— Wharton Online Insights, What Is the Network Effect?
O efeito de rede pode ser de dois tipos: unilateral e bilateral.
Efeito de rede unilateral
Também chamada de efeito de rede direto (direct network effect) e efeito do mesmo lado (same-side network effect), o efeito unilateral (one-sided network effect) ocorre pela interação entre pessoas que possuem a mesma intenção, mesmo job-to-be-done. A entrada de novos participantes na rede altera o valor para outros participantes do mesmo lado.
O Whatsapp é um exemplo claro. Qual seria o valor do app se apenas você o usasse? Nenhum! O produto só tem valor para determinada pessoa se conhecidos dela também usam o app. Quanto mais usuários aderem à solução, mais valioso o Whatsapp se torna para todos os participantes. Isto quer dizer que, usuários atraem mais usuários do mesmo grupo.
Efeito de rede bilateral e multilateral
Quando o efeito de rede depende de mais de um segmento de clientes, as intenções (job-to-be-done) são distintas, mas complementares — de um lado, quem quer vender e, de outro, quem quer comprar. Este é o caso em que as interações geram o efeito de rede bilateral (two-sided network effect), também conhecido como efeito de rede indireto (indirect network effect) e efeito entre lados (cross-side network effect).
Neste cenário se enquadram vários negócios, entre eles o Uber. De um lado, passageiros procuram transporte e, de outro, proprietários de carros procuram uma forma de renda. Ambos são clientes do Uber e, quando esses dois segmentos se encontram, estabelece-se uma relação de compra e venda.
O iFood também segue o modelo bilateral ao unir consumidores de refeições a restaurantes. Porém, nem sempre os restaurantes contam com entregadores próprios. É quando entra mais um agente, a pessoa que executa a entrega, formando o efeito de rede multilateral (multi-sided network effect) — algumas referências usam o termo bilateral para relações multilaterais, e vice-versa.
Neste tipo de rede, um lado tem efeito direto sobre o outro lado. O número de participantes de um grupo impacta o valor para os participantes do outro grupo. Assim, um grupo de clientes atrai outro tipo de grupo de clientes.
O valor do Uber para motoristas aumenta significativamente conforme cresce o número de passageiros. Assim como, quanto mais carros estiverem disponíveis, mais rápido passageiros conseguem transporte, o que evidencia o valor para eles.
Equilibrar oferta e demanda é o grande desafio. O efeito de rede pode gerar crescimento exponencial do negócio, mas quando a rede pende demais para um lado, pode destruí-lo.
Se a oferta de carros é pequena, passageiros demoram para conseguir transporte e podem desistir de usar o Uber. O contrário também é verdadeiro. Se tem pouca demanda, motoristas ficam ociosos e não rentabilizam, por isso não veem valor em utilizar o app.
Agora, pergunto: produto de plataforma depende do efeito de rede para gerar valor para o negócio? Ele atua como intermediador entre partes distintas e complementares? Não! Olha só…
Plataforma de negócios
O tão falado e desejado “efeito de rede” é resultado do modelo de negócio — como a empresa opera e gera receita. Isso se manifesta por meio de uma plataforma, a plataforma de negócios (business platform), como é nomeada no livro “Plataforma: A revolução da estratégia”. Também encontra-se sob os nomes two-sided platform ou multi-sided platform, a depender da fonte.
A plataforma de negócios facilita o encontro entre as partes, fornecendo ferramental necessário para que a interação e a criação de valor ocorra de forma eficiente.
O texto "Platform Business Model explained…in under 100 words", publicado pela Deloitte define que: "... um negócio de plataforma é um modelo de negócio (não uma infraestrutura de tecnologia) que se concentra em ajudar a facilitar interações entre um grande número de participantes. O papel do negócio de plataforma é fornecer uma estrutura de governança e um conjunto de padrões e protocolos que facilitem interações em escala, permitindo que os efeitos de rede sejam liberados" (tradução livre).
“What we mean with a platform business is a business model (not a technology infrastructure) that focuses on helping to facilitate interactions across a large number of participants. The role of the platform business is to provide a governance structure and a set of standards and protocols that facilitate interactions at scale so that network effects can be unleashed.”
— Deloitte Switzerland, Platform Business Model explained…in under 100 words.
Um negócio de plataforma pode se apoiar em plataformas “técnicas” para fornecer o ferramental. No entanto, é mais comum que as empresas iniciem e cresçam de forma orgânica, sem preocupação com a tecnologia que sustentará o negócio em longo prazo. Isso significa que o efeito rede ocorre mesmo com uma arquitetura monolítica. A operação do negócio não exige, necessariamente, que a arquitetura seja baseada em microsserviços (assunto para outro post). Até que, em algum momento, o crescimento se torna inviável devido a limitações técnicas do monolito e, uma das formas de lidar com esse cenário, é plataformizar o ferramental.
Produto de plataforma
Enquanto produto técnico, produtos de plataforma fornecem estrutura e tecnologia que sustentam as plataformas de negócios. Isso envolve diferentes tipos de plataformas (técnicas). A nomenclatura de cada tipo não é unânime, como pode ser visto em outro post que escrevi: Tipos de plataformas no mundo digital.
Plataforma de tecnologia
Algumas plataformas viabilizam o negócio desde o dia zero, como as plataformas de tecnologia (technology platform).
A AWS (Amazon Web Services) é um exemplo. Antes do lançamento de qualquer coisa, ela já é utilizada para armazenamento de recursos, dados e computação em nuvem. Elas habilitam os serviços que rodam nas aplicações. Veja que a AWS não atua em mercados bilaterais, elas não conectam oferta à demanda.
Plataforma de produto
Outros tipos de plataforma se tornam necessárias quando a solução vigente inviabiliza o crescimento do negócio devido a limitações técnicas, e/ou quando a mesma solução é desenvolvida em produtos diferentes da empresa. É quando se desenvolve plataformas de produtos (product platform).
‼️Cuidado para não confundir! Existe alguns tipos de produto de plataforma. "Plataforma de produto" é o nome do tipo de plataforma. Para product managers que fazem gestão de plataforma/API, a plataforma é o produto, por isso chamamos de produto de plataforma ou produto de API. Explico em detalhes no post "Plataforma de produto: que plataforma é essa?" .
Voltando ao assunto, "desde a década de 1970, a plataforma de produtos é usada como estratégia por diversos setores. A Volkswagen é um exemplo clássico. Nos anos de 1980, a empresa queria escalar o negócio, alcançar outros nichos de mercado. (...) Desenvolveram, então, a primeira plataforma de carros, com estrutura modular e padronizada, que possibilitou o uso da mesma base em modelos de carros variados" (Sheila Chang, Gestão de Plataformas e APIs).
Em outras palavras, a plataforma de produtos fornece recursos (capacidades de negócio) que já existem na empresa, em forma de uma base tecnológica comum. Esses recursos, que já estão prontos, podem ser adicionados em produtos e apps que os times internos desenvolvem.
Tecnicamente, plataformas de produtos são constituídas por módulos — building blocks. Os componentes se comunicam por meio de uma interface padronizada, conhecida como API. Dessa forma, as unidades menores são independentes, mas funcionam como um todo integrado — em oposição à arquitetura em monolito que funciona como uma única “peça”.
As empresas adotam a estratégia de plataforma com objetivo de acelerar o desenvolvimento de novos produtos/apps. Assim, evita-se desenvolver a mesma coisa do zero na criação de cada novo produto da empresa. Isso leva a redução de custos, antecipação de time-to-market e, como consequência, antecipa-se do retorno sobre o investimento (ROI).
O desafio não é equilibrar os lados da oferta com o lado da demanda. O desafio aqui é criá-la de modo que seja genérica — sem ser genérica demais a ponto de não ser útil para nenhum time interno —, flexível, extensível e estruturalmente escalável para suportar futuros casos de uso e integração de novos produtos.
Note que, nesse caso, o número de times internos que usam a plataforma não atrai mais times para utilizá-la. Isso mostra que não há efeito de rede, nem por isso ela perde valor.
A empresa pode decidir disponibilizar os recursos para uso por outras empresas e, dependendo do caso, a plataforma pode se tornar uma exceção, atuando tanto como base técnica, quanto como facilitadora de oferta e demanda — algo incomum quando se externaliza plataformas internas.
Exceção: quando o efeito de rede existe em produto de plataforma
As plataformas de computação (computing platforms) — Google Android, Apple iOS e Microsoft Windows — atraem usuários para smartphones e computadores. Elas acabam servindo a dois propósitos, o que faz delas plataformas de produtos e plataformas de negócios.
Além de atuarem como infraestrutura técnica para os dispositivos, elas são a base para criação de apps/softwares. Isso atrai devs independentes e empresas que, ao lançarem novos aplicações, adicionam funcionalidades aos equipamentos. Isso atrai ainda mais usuários para aquisição de dispositivos, que por sua vez, atraem mais devs e por aí vai. Reparou que, nesse caso, a plataforma conecta oferta-demanda e um lado afeta o outro? Isso caracteriza o efeito de rede bilateral.
O valor dos produtos de plataforma está no ganho de eficiência no desenvolvimentos de novos produtos (ou funcionalidades) e no poder de escala, o que independe do efeito de rede que ocorre na camada de negócio. Compreender essa diferença é fundamental para que você não se distraia em busca por algo que jamais será alcançado na gestão de plataformas/APIs. Assim, você direciona a sua atenção ao que realmente importa: construir plataformas robustas e eficientes que sustentem o crescimento do negócio (de preferência a longo prazo).
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